Um retorno a “Americanismo e Fordismo”: reflexões para o 01º de maio

Antônio Pádua é integrante da carreira de Analista de Políticas Sociais, do Poder Executivo federal, atualmente lotado na Superintendência Regional do Trabalho na Bahia (MTE). Colabora eventualmente com este blog.

O grande pensador marxista Antônio Gramsci, em um texto que é, hoje, considerado clássico (Americanismo e Fordismo), procurou estabelecer a conexão entre o desenvolvimento da grande indústria fordista, com seus novos métodos de organização do trabalho, e a adaptação psicofísica dos trabalhadores assalariados a essas novas condições de trabalho. Para Gramsci, toda mudança no regime de acumulação implicaria também mudanças nos processos de socialização dos trabalhadores para desempenhar a função de trabalhadores assalariados. O trabalhador adaptado ao ritmo e à cadência da grande indústria nunca foi obra do acaso e nem surgiu naturalmente; ele sempre precisou ser, de certa maneira, “fabricado” em determinadas instâncias de socialização, seu modo vida e de pensar precisaram ser acostumados à realidade das novas racionalizações do trabalho (engendradas, pelo fordismo, através da mecanização e da linha de montagem).

Para Gramsci, o resultado final do triunfo do fordismo é a constituição de um novo homem trabalhador, portador de uma nova condição moral. Era preciso adaptar psicofisicamente o trabalhador ao ritmo da linha de montagem, com suas tarefas parceladas e automáticas. E mais: era preciso adaptá-lo também à nova realidade salarial (o salário de cinco dólares), estimulando um comportamento racional no uso pessoal do dinheiro, para que o mesmo fosse gasto na reposição das condições físicas e mentais da sua força de trabalho e não em um comportamento destrutivo como, por exemplo, o alcoolismo. A nova “moralidade” do fordismo não dizia respeito apenas à conformação do padrão de consumo pessoal dos trabalhadores às novas necessidades da grande indústria em termos de demanda solvável e reprodução das capacidades físicas da força de trabalho.

O fordismo nunca foi apenas um conjunto de técnicas, métodos e tecnologias visando ao aumento da força produtiva do trabalho. O fordismo foi também um conjunto de mutações no processo de socialização da classe trabalhadora com objetivo de adaptá-la gradualmente aos novos processos de produção capitalista. Cada momento histórico de desenvolvimento do capitalismo combina, em estruturas de socialização específicas, coerção e persuasão para formatar física e psicologicamente os trabalhadores assalariados às necessidades do processo concreto de acumulação de capital.

A crise que se instalou a partir do ano de 2008, e que se irradiou da economia norte-americana para todo o sistema-mundo capitalista, criou as condições para um processo duradouro de constituição de uma nova relação salarial condizente com um regime de acumulação flexível acoplado ao uso das novas tecnologias de informação e comunicação e ao surgimento de novos produtos e serviços. O “capitalismo de plataformas digitais” carrega quatro características: 1) interação on-line entre empresas, trabalhadores e consumidores; uso de instrumentos móveis de comunicação e aplicativos conectados diretamente a uma rede informática; 3) produção e análise de dados digitais para a gestão dos processos e interações; 4) relações estabelecidas por “demanda” (a operação de produção somente se mantém através do engajamento do produtor direto).

O modus operandi das empresas que gerenciam as plataforma digitais contém onze elementos centrais: o controle sobre quem pode trabalhar (a porteira não está aberta), a delimitação daquilo que deve ser feito (o conteúdo e a materialidade da tarefa a ser realizada), a individualização da tarefa ser realizada (não passível de terceirização, ou seja, o trabalhador não pode “arrendar” seu perfil de acesso), a delimitação de como a tarefa deve ser realizada (o como fazer), o cálculo do preço da hora trabalhada, o prazo para a realização da tarefa, os meios de comunicação com a gerência das empresas, bloqueio (temporário ou parcial) de acesso ao aplicativo como manifestação de poder disciplinar-hieráquico, uso de incentivos para ampliação do tempo disponível (logado) para recepção de tarefas, punições e bloqueios em caso de tarefa/serviço negado.

Essas formas contemporâneas de despotismo “fabril” só podem vingar e se reproduzir se o tecido social foi devidamente semeado. O conceito de gamificação utilizado pela sociologia crítica do trabalho não significa apenas o uso de técnicas de envolvimento, engajamento, motivação e recompensa a partir da emulação do design de jogos eletrônicos no interior do processo de trabalho. A gamificação ocorre antes do ingresso dos jovens como força de trabalho nas plataformas digitais orientadas diretamente para a produção mercantil. As metamorfoses nas disputas em plataformas de jogos on-line, particularmente na última década, passaram de um caráter grupal-cooperativo para o assim chamado modo Battle-Royale: uma arena onde uma quantidade massiva de jogadores lutam todos contra todos como o único objetivo de acumular recursos a partir da eliminação de todos os outros adversários. Franquias como “PlayerUnknown’s Battlegrounds” (PUBG), “Fortnite”, “Apex Legends”, “Call of Duty: Warzone” e “Free Fire” operam na lógica e com o “roteiro” Battle Royale.

Precisamos apreender esse outro sentido de gamificação à luz das reflexões gramscianas. A dificuldade em regulamentar “o trabalho em aplicativos” no Brasil a partir de uma resistência de parte significativa dos próprios trabalhadores deve nos forçar a uma análise mais aguçada. E se a gamificação, enquanto processo de socialização para o trabalho num cenário de direitos sociais evanescentes e organização coletiva corroída, tornou-se eficaz para a reprodução social? Dito de outra forma: em um país cuja formação social, desde o escravismo colonial, foi assentada no caráter descartável do trabalho vivo (moinho de gastar gente, como fala o mestre Darcy Ribeiro) e no desperdício de força de trabalho, aprender jogando que a vida social é uma batalha infinita de todos contra todos (Battle Royale) parece que acopla bem para sustentar a reprodução das nossas desigualdades, não é?

Com a aproximação das celebrações do 01º de Maio, a pergunta do parágrafo anterior não é meramente  retórica. Como abrir canais de diálogo com as novas gerações que ingressam no mercado de trabalho tendo como diretriz a reconstrução da proteção social do trabalho no Brasil do século XXI? É possível restituir dignidade ao princípio de solidariedade (que estruturou boa parte dos direitos sociais da nossa querida CF/88) e que fabrica o próprio laço social que nos faz, ainda, uma civilização (apesar das nossas pulsões destrutivas estarem projetadas a céu aberto cotidianamente)? Aqui, mais uma vez, o Sardo nos deixa uma lição: “pessimista na análise e otimista na vontade”.